quarta-feira, julho 06, 2005

DE CARLOS DRUMOND DE ANDRADE



#01 Poesia Errante Para um Planeta Enfermo


...onde quer que a valia
valha mais do que a vida


(...)A neve foi malfeita, não se faz neve
como em filmes e gravuras.
E me dói a cabeça, diz alguém.
E a minha também, e o mal-estar me invade o corpo.
Desculpem se vomito à vista de pessoas tão distintas.
Envenenada morre a flor-de-outubro
no canteiro onde o branco
deixa uma escura marca de gordura.
………………………..
Estranha neve:
espuma, espuma apenas
que o vento espalha, bolha em baile no ar,
vinda do Tietê alvoroçado ao abrir de comportas,
espuma de dodecilbenzeno irredutível,
emergindo das águas profanadas do rio-bandeirante, hoje rio-despejo
de mil imundícies do progresso.


Pesadelo? Sinal dos tempos?
Jeito novo de punir cidades, pois a Bíblia
esgotou os castigos de água e fogo?
Entre flocos de espuma detergente
vão se findar os dias lentamente
de pecadores e não-pecadores,
se pecado é viver entre rios sem peixe
e chaminés sem filtro e monstrimultinacionais,
onde quer que a valia
valha mais do que a vida?

Minha Santana pobre de Parnaíba
meu dorido Bom Jesus de Pirapora,
meu infecto Anhambi de glória morta,
fostes os chamados
não para anunciar uma outra luz do dia,
mas o branco sinistro, o negro branco,
o branco sepultura do que é cor, perfume
e graça de viver, enquanto vida
ou memória de vida se consente
neste planeta enfermo.

Sem comentários: