sábado, abril 14, 2007

António, não morras agora que estão a olhar para ti.

 

 

António, não te sentes mal pois não, não vais morrer pois não, não morras agora que estão a olhar para ti e é uma vergonha, não posso dizer às pessoas
- o senhor desculpe mas o meu escritor português preferido morreu, assim, em frente de toda gente, logo depois de escrever para  toda gente que tinha sido operado a um cancro

         espera até chegares a casa e morre então se quiseres mas não agora, que mau aspecto, que vergonha, se queres morrer a sério como toda a gente, a gemer no hospital, com radiografias e análises médicas, imagina a vizinha de cima

- O António morreu numa vulgar esquina da literatura de nariz na corriqueira crónica semanal e não de cansaço criador no grande romance calculem
  diz-me lá se gostavas que dissessem isso de mim, de nariz no pastel de nata, calculem,

  imagina que bonito António, um grande escritor de nariz nos parenteses das tuas croniquetas, levanta-te, tevanta-te imediatamente, fazes o favor de te levantares, de esperar até chegarmos a casa, há autocarros de dez em dez minutos, não custa muito, e depois tiras o casaco, desabotoas o colarinho, pões-te à vontade, que ninguém te diz nada.

 

Nota -Adaptação, propositadamente incompleta, da parte final de uma crónica antiga de António Lobo Antunes, que, no último número da revista "Visão," publicou uma crónica que podia ter por título
(dele):
Olhem para mim. Acabei de ser operado a um cancro. Nunca morrerei de "uma (eufemística) doença prolongada".
O título
(meu)
(continuando a ser dele),
seria:
António, não entres por enquanto tão depressa nessa noite escura.

2 comentários:

Mariana Matos disse...

"Viver é como Escrever sem corrigir" (António Lobo Antunes)
Gostei muito do seu texto, Dionísio. :)

Dsousa disse...

Mariana, obrigado pelo teu amável comentário.
Obrigado também pelo texto de Lobo Antunes que, há uns dias atrás, enviaste como comentário.
A verdade é que a maior parte do mérito do texto que utilizei é do próprio Lobo Antunes. Podes encontrá-lo nas páginas 362/363 do 1º livro das "Crónicas".
beijos
Dionisio