sábado, setembro 17, 2005

No princípio era o Verbo...


"Mal Hermes começou a falar, disse logo uma mentira, afirmando que não sabia mentir; que era exacto e preciso como Nereu, o antigo deus oracular do Oceano.
No entanto, enquanto mentia, contava a verdade, referindo pormenores muito precisos: não tinha levado as vacas para casa (de facto, deixara-as no estábulo, na margem do Alfeu); não tinha transposto o limiar da gruta (de facto, passara invisível, pelo buraco da fechadura).
Parecia Ulisses, contando a Eumeu e a Penélope “mentiras que parecem verdades”.
E piscava os olhos, como se pusesse em dúvida o que dizia e quisesse criar uma relação de cumplicidade com Zeus e Apolo.
Não sei se os deuses terão compreendido a nova arte que, naquele momento, Hermes inventara. As suas palavras eram, ao mesmo tempo, falsas e verdadeiras, porque escondiam a mentira sob a verdade aparente, eram insinuantes, sedutoras, sofistas, cheias de reservas mentais e de ironia.
A nova arte de Hermes era o lógos, o discurso, essa coisa ambígua, como dizia Platão, em que o divino e o humano, o verdadeiro e o falso, o que é tão liso como as coisas perfeitas e o que é tão áspero e rugoso como os bodes se confundem da forma mais insólita."

(Citati, Pietro, Ulisses e a Odisseia, Livros Cotovia, Lx.2005, pag. 34)

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