sábado, junho 18, 2005

A Difícil Conquista da Autonomia Gramatical



"A revisão constitucional é clara. Ao substituir a expressão “em cada Região Autónoma” por “para cada Região Autónoma”, retirou ao Representante da República qualquer carácter de residente permanente no arquipélago".

Devo confessar que me fascina esta tentativa legislativa da Assembleia da Região Autónoma da Madeira de dividir as preposições em duas categorias :

Preposições autonómicas, encabeçadas pela preposição "para".

Preposições anti-autonómicas, (ou de pendor centralista) encabeçadas pela preposição "em".


Esta última fixa o Ministro da República nas Regiões. Aquela recambia-o para o Terreiro do Paço.

É verdade que não tenho notícia de alguém ter descortinado tais surprendentes capacidades a estas inocentes preposições, até o (LAIA) Laboratório de Alta Investigação Autonómica que é a Assembleia Legislativa da Madeira, ter posto a descoberto esta tara oculta. Mas é precisamente para isto que existem estas prestimosas instituições. Para separar o trigo autonómico do joio centralista. Mesmo quando mascarado de insinuante e inocente disfarce verbal.

Também é verdade que me tenho de confessar particularmente surpeendido.

Acontece que, há mais de cinquenta anos, que as simples e humildes preposições - estas duas e as restantes 23 - convivem intimamente comigo.

São mesmo as únicas palavras invariáveis da língua portuguesa, que posso considerar carne da minha carne e espírito do meu espírito.

Nunca soube de cor e salteado nem os advérbios, nem as conjunções, nem sequer as simpáticas e desopilhantes interjeições.

Mas as preposições eram, na língua portuguesa da instrução primária, para aí da terceira classe, o mesmo que a tabuada na aritmética da primeira classe.

Tinham de estar todas na ponta da língua. Era um fascinante Pai-Nosso da catequese linguística, que alguns mais malabaristas, tanto recitavam de a, ante, após, até...sob, sobre, trás. Ou ao contrário.

E enchiam-nos e prenchiam-nos a boca e a alma. Fisicamente, portanto, mas também espiritualmente.

Já as interjeições, não. Como se sabe estas exprimem apenas "estados de alma". Em qualquer caso, por mais importante que esta seja, é só uma parte de nós próprios.

E os advérbios e as conjunções, desde a primeira aprendizagem, nos ensinavam a guardá-los, à devida e ceremonial distância das suas categorias próprias. Embora sendo manifesta a sua plebeia origem, tinhamos de mantê-los - aos advérbios - muito empertigados na suas fardas de lugar, tempo, modo, etc. Talvez, sem muita pompa, mas sempre com medida circunstância.
Os mais inconvenientes eram os garotões dos advérbios de modo, que sempre tinham em "mente" alguma promiscuidade trans...modal. Apesar de se manterem intransigentes na sua ligação às formas femininas dos adjectivos biformes.
Nos outros casos, eram menos selectivos.
Mas também se davam ares superlativos. Exactíssimamente. Ou, mais ainda, excelentíssimamente.

Tudo isto, para não falar nas senhoriais conjunções.
Estas eram mesmo outra classe de palavras. Sempre acima das outras. Na superintendência de coordenar. Ou na proeminência de subordinar.

As preposições, não. Eram todas iguais. E estabeleciam relações fáceis com todas as outras palavras.

Na altura, não sabiamos bem o que era isto de estabelecer relações entre palavras.

Mas, também não sabiamos muito bem como eram as relações noutros domínios. Menos das palavras e mais das pessoas. E tanto da alma como do corpo. Mas esta penumbra de conhecimento apenas entrevisto só lhes aumentava a atracção. Como nos outros domínios.

A esta altura da minha divagação, comecei a duvidar da minha sanidade linguística autonómica.
Como é que tão estreito convívio com as preposições nunca me revelara esta elementar distinção entre preposições pró e anti autonómicas?

Resolvi decidir-me pela prova definitiva. Recorrer aos velhos tira-teimas chamados dicionários. Mais precisamente ao dicionário de dificuldades da língua portuguesa.

Fui direitinho à palavra "para". A menos suspeita de centralismo.

Eis o que descobri. Para minha decepção autonómica, mas conforto pessoal.

Afinal, não sou o único!

"Para (movimento). Epifânio, na sua excelente Gramática Portuguesa Elementar, p.94, ensina: "A preposição a designa o termo do movimento e de uma extensão, sem mais nenhuma ideia acessória: "ir a França"... Quando se quer exprimir demora no lugar, ou destinação emprega-se para: "ir para o Brasil", "mandar vinhos para lnglaterra". Isto é, "a" indica ida com volta breve, "para" demora prolongada ou tenção de permanência definitiva. Note-se que o mesmo Epifânio, na "Sintaxe Histórica", pág. 120, também ensina que para "na designação do lugar onde, se emprega em contraposição ao lugar em que se está (e se reforça a expressão com o advérbio): "Está (lá) para a quinta".

Júlio Moreira, Estudos da Língua Portuguesa, pág. 50, II vol. afirma que para "passou... a exprimir... o lugar onde, em determinadas frases, v. g.: "está para o campo...", isto é, "está no campo" (para onde foi), "está para fora", "está para casa do pai".
Na linguagem popular e familiar encontra-se até a preposição para, junto do advérbio aí. "Que está você para aí a chorar misérias?" Para aí designa, de modo enfático, apenas a circunstância de lugar onde. Na pág. 70 deste mesmo livro o autor acrescenta que "a construção de frases como "está para o campo"... pode explicar-se também como devida à confusão com outras em que a preposição para designa o lugar para onde, como "foi para o campo".

Fico-me por aqui. A conclusão que sou forçado a tirar é que nem os dicionários se livram da pecha do centralismo. Tenho de mandar testá-los - a todos - no LAIA/ALRAM.
Agora me recordo que há uma anedota, tipicamente portuguesa, que sublinha eloquentemente esta subtil distinção de sentido entre "ir a...", ou "ir para"... Dada a reconhecida gravidade e importância da matéria autonómica que estou tratando, não me atrevo a "borrar" o tema com o tal palavrão. A mente, portuguesmente suja, de quem me lê que o descubra. Mas aviso que, se o conseguir, será suspeito sinal de autonomismo muito enfraquecido!

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