sábado, dezembro 25, 2004

O NATAL DE "VER"

O Natal é uma daquelas datas, à qual nunca consegui ficar indiferente, mesmo naquelas fases da vida em que tudo se põe em questão. Este carácter intangível da data mantém-se na família. Com toda a sua miscelânia de versões tradicionais e modernas. O presépio convive com a árvore de natal. O pinheiro natural, com o seu sucedâneo de plástico. As séries cintilantes da árvore, com as velas no fundo da gruta com a trindade humano-divina de Jesus, Maria, José e a trindade animal do burrinho, da vaquinha e da ovelhinha. Não esquecendo a trindade régia do Gaspar, Belchior e Baltasar.
Mas o que eu pensava trazer para este "post"não era esta minha vivência pessoal da data, mas aquilo que julgo serem as suas raízes, pela pena de um nome quase completamente esquecido da literatura portuguesa.
Trata-se de Brito Camacho (1862-1934), que foi importante político da primeira república, jornalista e prolífico escritor.
A sua obra de contos "De Bom Humor", abre com um conto intitulado "A missa do Galo", de que transcrevo a passagem que originou o título deste "post".
" Havia sempre, no pequenino rancho, quem perguntasse à comadre Antónia porque se chamava àquela cerimónia a missa do galo, e porque era ela dita à meia noite, quando todas as outras missas eram ditas, as do domingo, das onze para o meio dia, e as da semana logo de manhã cedo, frequentadas estas só pelas velhas.
A comadre Antónia explicava:
- O menino Jesus nasceu à meia noite; a missa que se diz a esta hora é em acção de graças pelo seu nascimento. Os galos não costumam cantar tão cedo; mas naquela noite, mal souberam que o menino tinha nascido, desataram a cantar. Quando o menino fez um ano, rezou-se a primeira missa da meia noite, e um galo, sem ninguém saber donde tinha vindo, apareceu na cabeça do padre, cantou como fazia na capoeira, e desapareceu como tinha vindo, sem ninguém saber para onde foi.
Em você sendo grande - dizia a comadre Antónia, virando-se para mim - verá estas coisas nos livros e outras muitas que os fiéis devem saber, para não cairem em pecado.
Toca a deitar."
Nesta era da usura da imagem, em que, muitas vezes, acabamos por ficar incapacitados de ver para além dela, o Natal faz-nos (faz-me) regressar a esses tempos de um universo mitológico de explicações claras para tudo, que nos permitia "ver estas coisas nos livros" e na vida.
Depois de ter saído desse universo há muitos anos, sinto-me feliz por a ele poder voltar. Nem que seja...um dia por ano!

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