segunda-feira, janeiro 03, 2005

A "BRINCADEIRA" de 2004




Não consigo libertar-me de 2004. Dentro de mim, não o consegui apagar, quando rasguei a última página do calendário.
O pior é que, por mais voltas que dê às minhas memórias de 2004, sobretudo às minhas memórias televisivas, não consigo fugir a esta imagem.
Nem o maremoto de imagens televisivas da tragédia asiática de 26 de Dezembro, que nos vem chegando em crescendo. Precisamente o contrário do que habitualmente acontece com as catástrofes de dimensão histórica na era da televisão. Que costumam sacudir-nos em decrescendo, até se esvairem numa referência sem imagens na cauda de um telejornal.
Nem mesmo esta circunstância consegue apagar ou diluir da minha retina esta imagem, a crueza desta imagem, a pornografia moral e cultural desta imagem.
O que podem fazer dois seres humanos com uma coleira? Só uma brincadeira. Só podem fazer uma brincadeira.
Uma brincadeira, como aquela que deu origem ao romance de Milan kundera, com este preciso título: A BRINCADEIRA.
O próprio Milan kundera resume o tema do romance:
"Na "Brincadeira", Ludvik vê todos os seus amigos e condiscípulos levantarem a mão para votarem, com enorme facilidade, a sua exclusão da universidade, arruinando assim a sua vida. Tem a certeza de que eles seriam capazes, se necessário, de votarem com a mesma facilidade o seu enforcamento. Daí a sua definição do homem: um ser capaz de, em qualquer situação, enviar o próximo para a morte."
Quantas páginas do calendário terei de rasgar ainda, até me reconciliar totalmente com este "ser capaz de, em qualquer situação, enviar o próximo para a morte", que 2004 me gravou no mais fundo de mim próprio?

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