sexta-feira, março 11, 2005

Aquilino Ribeiro e a moda dos cabelos curtos



"Vejam a admirável inconsciência das mulheres! Porque um dia uma cabotina apareceu no palco a bater a perna de cabelos cortados, vá de tosquiar a cabeça como se fazia outrora às atacadas de lepra, se faz hoje no Aljube e nos hospitais.
A seara imensa de lirismo, que brotou da contemplação das tranças de nossa irmã Eva, foi burlescamente ceifada pela tesoura gordurenta do cabeleireiro.
Pobres vates que não sonharam o anacronismo ridículo de suas musas! O que supunham ser o enfeite por excelência, o emblema voluptuoso da feminilidade, veio sua alteza reinante a Loucura, e decretou que era um estigma de escravidão, um acessório inestético e empecilhento.
Ondas de cabelos louros, de cabelos pretos, enlevo dos amantes, diadema glorioso de uma fronte branca, foram no cisco das carroças para o guano. O que dantes era um humilhação tornou-se uma vaidade.
Esses ex-votos, tão ternos, de tranças penduradas à ilharga dos santinhos pelas ermidas dos montes, não mais falarão às nossas madamas a linguagem suavíssima da penitência, mas sim duma desbragada e tirânica moda.
Como eu choro essas cabeleiras que, em catadupa, cobriam Susana à vista dos velhos libidinosos, a vergonha das noivas ao subirem o tálamo na primeira noite, e que as rainhas de Corneille desatavam pelas espáduas em sinal de realeza e heroicidade!
Em troca que nos oferece Eva, tomada de modernismo? Umas guedelhas à chien a borrifar as têmporas e a courama de uma nuca salpicada de totós de cerda, como presunto cozido, ou mato galego rapado pela roçadeira.
Deus lhe perdoe; que na nossa idolatria não encontra perdão!"

(Aquilino Ribeiro, Crónica Quinzenal in "A Ilustração" de 16-VII-1926

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