sexta-feira, março 25, 2005

O centenário de Verne e a Morte de Salgari



Comemorou-se a ontem o centenário da morte de Júlio Verne.
Nestas comemorações de figuras da literatura confluem sempre razões de dimensão pessoal e de dimensão literária. A dimensão pessoal de Julio Verne, no meu caso, coincide com a da maioria das pessoas da minha geração. Tratou-se de um autor de eleição da minha juventude. A sua primazia só era seriamente disputada por um outro autor de livros de aventuras. Emilio Salgari. Hoje, na jovem, ou apenas mais nova, geração portuguesa, poucos recordarão o seu nome. A não ser através de um dos seus personagens - Sandokan, o tigre da Malásia, o tigre de Mompracem, - que teve revivescência efémera no cinema, há alguns anos, e cujas aventuras o autor desenvolvia em qualquer coisa como uns quatorze volumes, se bem recordo. Mas sempre com a mesma sucessão vertiginosa e hipnótica de fabulosas aventuras em reinos de mistério e fantasia.
É curioso constatar o paralelismo e também o contraste de destinos na memória literária e na própria vida, entre estes dois autores. Júlio Verne sempre viveu com o complexo de que não haveria lugar para ele na história da literatura. Emílio Salgari, também sempre foi ignorado pelos críticos literários, apesar de fazer edições de cem mil exemplares na Itália do sec. XIX.
Na minha juventude, os adeptos de Emilio Salgari eram muito mais entusiastas do que os de Julio Verne. Este tinha a má fama de se alongar fastidiosamente, durante o primeiro volume das suas obras com mais do que um, e durante metade dos capítulos das obras num só volume, na descrição arrastada e excessivamente minuciosa dos preparativos para a aventura.
Desta forma, os fans de Julio Verne, na sua maioria só o conheciam naquilo em que ele era mais parecido com Emílio Salgari. Para eles, os profusos conhecimentos de Julio Verne em matérias cientificas nas mais diversas áreas como a astronomia e a geologia, só o tornavam entediante. As vinte mil léguas submarinas bem podiam ser reduzidas a uma mais bem digestiva meia dúzia. Ou as cinco semanas em balão, a uma quinzena.
Em geral, o pai da ciência-ficção, bem se podia ter ficado pela ficção pura e simples. Foguetes espaciais, submarinos, helicópteros e ar condicionado, quase só interessavam como cenário de aventura e instrumento da mesma. Os meandros do seu funcionamento eram temas demasiado áridos. Para mais, muitos deles, já então, ultrapassados no seu conteúdo técnico e cientifico.
Os incondicionais adeptos de Salgari, nem se davam ao incomodo de fazer essas antologias abreviadas das páginas de aventura de Júlio Verne. Os corsários, piratas, janízaros e sultões de Salgari forneciam-lhes essa vital matéria prima por atacado, poupando-lhes o trabalho de condensação à Reader's Digest.
Singularmente contrastante foi também o rumo da vida destes dois homens, que os acasos editoriais juntaram em Portugal na juventude dos anos 50.
Julio Verne enriqueceu com a popularidade e venda da sua obra. Acabou a sua vida, em férias pela Europa no seu próprio iate.
Emilio Salgari, acabou suicidando-se.
Em despedida, escreveu a vária gente. Aos seus editores, lembrou:
"A vocês que enriqueceram com a minha pele, mantendo-me a mim e à minha família em miséria quase permanente, só vos peço, em troca desse lucro, que cuideis do meu funeral. Saúdo-vos, quebrando a minha pena".

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