terça-feira, março 22, 2005

Um Papel no Chão de uma Vida

"Romance à parte, descemos então a colina alteada pelos sucessivos acrescentos das cidades sobre as cidades.
A ideia é que ainda agora a Pré-História dos homens não acabou, ainda estamos em luta pelo número de páginas sagradas que cada livro contém, pois estejamos onde estivermos o nosso Livro continua sempre a ser aquele que melhor reproduz a fala de Deus.
É por isso que, em Jerusalém, a imagem de uma rapariguinha soldado que por um instante pára, desvia a metralhadora da cara e levanta do chão um papel já pisado, dobra-o e mete-o no bolso, brilha como uma estrela de uma outra natureza, na luz do dia que sobe.
- Porque precisaria a rapariga soldado daquela folha? Iria escrever nela alguma mensagem? Lembrar-lhe-ia algum recado porque havia esperado e não teria vindo?
Vestida de verde caqui e de cabelo amarrado, teria visto naquele pedaço de papel o início de uma sucessão de palavras que lhe faltavam? Lembrar-lhe-ia pela cor, as rosas do jardim de sua casa? Lembrar-lhe-ia o seu urso de pelúcia? O seu primeiro amor, o seu último brinquedo? A sua primeira narrativa, o seu terceiro poema?
- Um mundo de conjecturas se inicia, ali, onde o anódino alcança o sentido do íntimo humano, e nós ficamos desarmados uns diante dos outros, semelhantes e unidos.
É sobre isso, sobre essa solidão habitada pela imagem do insignificante, que é preciso escrever durante toda a vida, conforme se confirma nas ruas de Jerusalém".
(Lídia Jorge, Passagem por Jerusalém, in JL nº 899 de 16 a 29 de Março de 2005)

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